segunda-feira, 21 de junho de 2010

25 anos não são nada

25 anos da Casa das Artes de Tavira cintilando nas estrelas plantadas no azul prússia das noites de Tavira. 25 anos vividos no fascínio pelo rectângulo de luz que se inscreve no asfalto da Rua João Vaz Corte-Real, luz que se abriu em 15 de Julho de 1985 (?) para não mais se apagar ao som de uma música de fundo, sabe-se lá porquê ou sabendo-se bem porquê, na voz de Gardel, antes de andar a ser polida para aterrar em Hollywood onde trágica, mas felizmente para os amantes da música, nunca chegou pelo que atravessa em todo o seu esplendor o silêncio das noites de Tavira “(…) volver... con la frente marchita / las neves del tiempo plantearon mi sien / sentir... que es un soplo de vida / que veinte anos no es nada (…) y el mundo yira” ano sobre ano até somar os 25 anos que são nada e que mudaram muita coisa, tanta coisa ao compasso de um grupo de extravagários que caminhava sobre as águas do rio Sécqua uma marcha, que continua ainda hoje e que vai continuar amanhã, sempre com o imenso gozo de atravessar aquele rectângulo de luz com determinação de sísifo, transportando objectos que iam fixar nas paredes, sentar nos plintos, provocando o olhar e a cabeça de quem visitava aquele espaço onde o binómio de Newton era tão belo como a Venús de Milo – óóóó – engenheiro Álvaro de Campos que há 25 anos estava à nossa espera eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo! Eh LaHo-lahá-á-á-á!
Há que entrar no labirinto das folhas da memória, onde tudo se escreve e tudo se perde, para ser possível viver o que se transformou e transforma dentro e fora da Casa das Artes de Tavira na loucura ardente que corria por dentro da árvore que crescia raízes imateriais e indestrutíveis naquele espaço, que ia ganhando espaços e ideias para sustentar o voo planado dentro do anticiclone, reduto defensivo em que se abrigava para contra-atacar o vento forte da normalização que já então se fazia sentir molinhado por essa casta emergente e suspeita de curadores, comissários, fazedores de conteúdos, marchantes, produtores de conceitos e outros bichos móis, baixo clero a saltar das costuras das artes e das letras, arautos da era do vazio, movendo-se à velocidade dos glutões de um jogo virtual, tentando submeter artistas, amantes e conhecedores das artes e das letras às rodas das engrenagens da pós-modernidade. Ao avanço desse deserto, a Casa das Artes de Tavira, refugiada dentro das paredes do anticiclone, resistia com a chama dos desatinos iniciais bem viva, sustentada pelas mãos visíveis e invisíveis do Zé Delgado, debaixo do olhar cintilante do Henrique, atento ao vai e vem das obras de arte e seus visitantes. A Casa das Artes que progredia riscando mapas de uma nova geografia onde Tavira se juntava a Londres e Sintra, para ser o terceiro vértice da vida do Bartolomeu, o vértice onde trabalhava e implantava a placa giratória do ir e vir de artistas das sete partidas do mundo. Tudo construído com o trabalho voluntário de muitos e de tantos jovens, a entrar e a sair da adolescência, que abandonavam sem remorso o sol na areia da praia para se entregarem a todo o tipo de trabalho que garantia a batida do coração da Casa das Artes de Tavira. Eles penduravam quadros, lavavam o chão e a louça, faziam filmes, escreviam precários, vendiam álcoois e não álcoois, espalhavam alegria, provocavam os artistas, acendiam a luz, dialogavam com todos, fechavam a luz, faziam o que era e o que não era preciso, desenhavam, tocavam música, aprendiam e ensinavam. No dia seguinte, no ano seguinte lá estavam com a mesma disponibilidade a ligar o disjuntor que punha em circulação a paixão pelas artes que abria as portas da Casa das Artes de Tavira enquanto Tavira crescia. Enquanto Tavira se transformava e a Casa das Artes era um dos seus discretos pilares.
 25 anos não são nada mas foram o tempo de a morte essa flor que só abre uma vez / Mas quando abre, nada abre com ela / abre sempre que quer, e fora de estação, retirar do nosso abraço, dos abraços que trocávamos à porta da Casa das Artes amigos que nos abandonaram, que foram para sempre subtraídos ao convívio para este ano se juntarem nesta exposição que os trás de volta, que lhes dá uma vida outra.
Não esquecemos as horas, não é possível esquecer o que com eles aqui vivemos. Ao fim da noite, noite dentro, iremos para a ponte que traça a fronteira dos rios Sécqua e Gilão. Sentados nos bancos de pedra erguemos os nossos copos às estrelas, pomos a vitrola a tocar que veinte y cinco anos no es nada y el mondo yira para nos sentirmos reflectidos no espelho de água da alegria onde se reflectem todas as exposições em que mostrávamos o que era importante, sem concessões às oscilações do gosto, às variações da moda, ao vazio da desorientação cultural que varre o nosso século. É nossa a voz rouca, riscada de Gardel, salva das renúncias e traições que a iam começar a lavar para a tornar aceitável no mercado dos sentimentos, no mercado em que tudo pode ser traficado real e virtualmente numa cultura de ecrã, em que a vida perde sentido e dignidade. Renúncias e traições que nunca fizemos, nem faremos, sempre na defesa da arte, sempre contra as traficâncias estéticas, as concessões ao gosto dominante, recusando-nos a ir ao mercado da hortaliça dos artistas de serviço às badaladas retóricas dos mercenários de uma arte desencantada florescendo num mundo sem pathos.
Erguemos os copos fazendo tilintar os cristais no brilho sonoro de uma fuga de Bach assinalando o lugar donde partimos e onde estamos, atentos à respiração do universo. Transcorridos 25 anos estamos aqui, continuamos aqui como quando Casa das Artes só havia uma, a de Tavira.

Manuel Augusto Araújo

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