sexta-feira, 25 de julho de 2008

Bartolomeu dos Santos, entrevista, Postal do Algarve, 2008.02.14

“Toda a arte traz o cunho da sua época histórica, mas a grande arte é aquela em que esse cunho está mais profundamente marcado”
Henri Matisse

Bartolomeu dos Santos nasceu em Lisboa em 1931, tendo-se interessado pelas artes desde novo. “Venho de uma família muito culta que se interessava muito particularmente pela arte. Inicialmente tencionava estudar História de Arte em França mas mudei de ideias e fui para a Escola de Belas Artes em Lisboa. Pensava tirar arquitectura, o que nunca fiz, em vez disso matriculei-me em escultura para no ano seguinte me inscrever no curso de pintura. Ao fim de quatro anos já não suportava o ensino na Escola de Belas Artes e decidi ir estudar para o estrangeiro como fizeram muitos outros artistas da minha geração”, conta o artista ao POSTAL do ALGARVE, “hoje é comum estudar em Portugal porque as condições de trabalho e de ensino são diferentes das do tempo do fascismo. Existe realmente uma abertura que não havia quando eu era estudante. Hoje é possível viver em Portugal, estudar aqui e depois fazer, o que é comum, um mestrado no estrangeiro. E já não haver fronteiras faz toda a diferença.

Em 1956 parti para Londres, pois estava mais interessado na arte inglesa da época do que na arte francesa. Tinha a sensação que Londres viria a ser um grande centro artístico em detrimento de Paris”.
Estudou na Slade School of Fine Art com Anthony Gross. “A tradição de longa data em Portugal era ir estudar para Paris mas, de facto, nos anos 50 Londres começava a impor-se já como um centro de arte alternativo e, assim, antes de mim já vários artistas tinham partido para Inglaterra. Paula Rego e João Cutileiro precederam-me e o Jorge Vieira precedeu-nos a todos na ‘Slade School’. Fui encontrar na Inglaterra a liberdade que me faltava em Portugal, bem como, um processo de análise que eu desconhecia no meu país. A minha intenção inicial era estudar pintura mas rapidamente me sugeriram ir trabalhar no atelier de gravura. O meu professor disse-me ‘você vai fazer gravura porque os seus trabalhos têm esse carácter’, e assim passei a dedicar-me à gravura durante muitos anos. É de facto uma das minhas técnicas preferidas”.

Teve a sua primeira exposição individual na Sociedade Nacional de Belas Artes em Lisboa em 59. Desde então expôs individualmente em Lisboa, Porto, Tavira, Ponta Delgada, Angra do Heroísmo, Braga, Rotterdam, Umea, Frankfurt, Heidelberg, Mainz, Wiesbaden, Wildeshausen, Detroit, Madison, Oxford, Londres, Glasgow, Sheffield, Johanesburg, Cape Town, Tóquio, Paris, Antuérpia, Cidade do México, Islamabad, Karachi, Lahore Luxemburg, Granada, Macau e Rabat. Teve uma retrospectiva na Fundação Gulbenkian e em 2001 duas retrospectivas, uma no Centro Cultural de Cascais e outra em Londres na galeria do London Institute.

Actualmente, tem trabalhos incluídos na exposição “Novas Aquisições de Gravura”, no Museu Britânico, museu onde a sua obra está largamente representada. Entre outras colecções públicas, Bartolomeu está representado no museu Victoria & Albert, em Londres, no museu Ashmolean em Oxford, no museu Fitzwilliam em Cambridge, bem como, no Museu de Arte Moderna em Nova Iorque e na Biblioteca Nacional de Paris.

“Durante 30 anos fiz praticamente só gravura e arte pública”, afirma. Mas Bartolomeu dos Santos não se considera apenas um gravador. “Sou um artista que fez gravura durante muitos anos mas actualmente também pinto, faço objectos em forma de caixa e dedico-me à arte pública, sendo esta, no entanto, raramente mencionada”.

Dentro da arte pública mais recente podemos encontrar obras deste artista em diversos lugares. Em Portugal: no Metropolitano de Lisboa, na Estação de Entre Campos, esta é revestida de painéis a pedra gravada. Podemos também encontrar decorações em azulejo de vastas dimensões nas estações da Reboleira e no Pragal, no Crown Plaza Hotel no Funchal, bem como no Edifício da Lotacor em Ponta Delgada. Em Grândola fez um mural em azulejo comemorativo do 25 de Abril. No estrangeiro podemos encontrar pedras gravadas em Tóquio, na estação Neonbashi e no Museu de Macau dois painéis também em pedra gravada. “A arte pública é uma arte que é acessível a todos” explica, “a pessoa não tem que ir a um museu ou a uma galeria para poder apreciar uma obra de arte. Mas a colaboração entre o artista e o arquitecto é fundamental. Para mim é uma forma ideal de arte pela sua acessibilidade. É também uma das formas mais antigas de criação artística”.

O seu atelier em Tavira está cheio de trabalhos em diversos materiais e diversas técnicas. “Se bem que o atelier tenha sido concebido como atelier de gravura, hoje pinto mais do que faço gravura, hoje pinto mais do que faço gravura e também faço caixas, desenhos, ilustrações… Por exemplo, ilustrei muitas obras de Saramago, bem como, capas de livros”. Também fez ilustrações para o “Arcanjo Negro”, de Aquilino Ribeiro (Livraria Bertrand), “Até ao Fim”, de Virgílio Ferreira (Bertrand Editora), além de capas de livros, de António Tabbuchi (ed. Picador), e Fernando Pessoa (Penguin). “Acho que o artista não se deve restringir no seu trabalho. Deve ter um sentido humanista da arte e estar aberto ao mundo que o rodeia. Veja por exemplo o caso da Paula Rego que, sendo pintora se dedica à gravura há muitos anos e é tão natural na gravura como o é na pintura ou no desenho. E falando de desenho, há muitos artistas que se esquecem que o desenho é fundamental e que alternativamente acreditam que o computador tudo resolve.

O computador também é importante, é um novo instrumento que se deve usar mas que só por si não elimina técnicas anteriores. Repare bem no caso da gravura. As técnicas da gravura foram inventadas primeiro por artesãos e depois por técnicos com o fi m de reproduzir uma imagem melhor e mais depressa. E conforme iam aparecendo as técnicas mais efi cientes, as técnicas anteriores deixavam de estar em uso comercial mas continuavam a ser usadas por artistas. Por isso técnicas como o buril, a gravura em madeira, a água-forte e a litografia chegaram ao nosso tempo. E no século passado apareceu a serigrafi a e agora o computador, que muitos artistas já estão a usar. Como por exemplo, veja o caso de Richard Hamilton, um dos grandes da Pop Art, que tendo começado a sua obra gráfi ca com água-forte, passou depois a usar a serigrafia e hoje o seu trabalho reflecte o uso que ele faz do computador”.

Para Bartolomeu dos Santos o desenho é a base de tudo. “Não podemos dizer, como já tenho ouvido, que o desenho já não é necessário. No fundo é a conjunção do olhar, do cérebro e da mão que, neste caso nos levam a aprender a ver. Hoje, temos muitas técnicas novas que, como já disse, não invalidam as antigas. O que é preciso é saber usá-las e compreender as possibilidades que elas nos oferecem”.

A arte abrange muitas áreas. “Não nos esqueçamos que a criação artística não se restringe unicamente às artes plásticas, mas que a música, o cinema, a literatura, a fotografia e arquitectura são formas de criação com muitos pontos em comum. Pense nas fontes e referências que todos os criadores vão buscar. Não há, de facto, obras totalmente originais. Brueghel na sua juventude tinha como referência Hyeronimus Bosch, as fontes e referências na obra de Picasso são numerosas. Beethoven foi influenciado por Mozart e hoje em dia muitos pintores sofrem uma grande influência do graffitti que, de facto, é uma forma de arte pública”.

Quanto à prática, “esta é fundamental para qualquer criador e tem que ser constante. Na criação artística julgo não poder haver grandes interrupções, pois isso seria como que começar do zero cada vez que se recomeça. E a prática dá-nos conhecimento e esse conhecimento por sua vez aumenta-nos a percepção do mundo que nos rodeia.
Quando ouvi pela primeira vez os últimos quartetos de Beethoven ou o ‘Tristão e Isolda’, era muito novo e não os compreendi. E no entanto hoje fazem parte da lista dos meus favoritos. E quem diz arte clássica, diz arte contemporânea. Repare que há amadores do jazz tradicional que não entendem as formas que este tomou no nosso tempo. Também gosto de olhar para uma obra para a desconstruir até ir às suas origens. Pense na metáfora que é a desconstrução do Hal (computador) pelo astronauta no ‘2001’ do Kubrick”.

Bartolomeu dos Santos foi professor na Slade School of Fine Art e professor visitante em muitas Escolas de Belas Artes britânicas, Universidade de Wisconsin em Madison (E.U.A.), Escola de Belas Artes de Umea (Suécia), National College of Art, Lahore (Paquistão) e Academia de Arte de Macau. Há já vários anos que não lecciona de modo convencional, muito embora conversar com este Mestre, seja só por si, um momento de aprendizagem.

Quanto ao ensino, diz Bartolomeu, “durante os 35 anos que ensinei na Slade School trabalhei sempre ao lado dos estudantes e quando trabalhava em gravura as minhas mãos estavam tão sujas de tinta quanto as deles. No meu departamento tinha vários assistentes mas era condição ‘sine qua non’ que, além de ensinarem, estes deviam também fazer o seu trabalho. 
Era uma forma de ensino com espírito de ofi cina e que mais tarde se haveria de repercutir em outras escolas inglesas e não só. No dia em que os novos estudantes chegavam eu reunia-os todos e dizia-lhes: ‘Olhem, estamos todos no mesmo barco, a única diferença é que eu tenho mais experiência do que vocês, mas alguns irão mais longe do que eu. A linha de partida é aqui’. Praticamente toda a minha obra gravada foi feita na Escola com os estudantes. Eles viam o que eu fazia, viam os erros que eu cometia, bem como os bons resultados que eu obtinha. E mutuamente discutíamos os nossos trabalhos. Não era o ensino das 10 às 5, com hora para o almoço como em Portugal. Não era uma burocracia, era uma prática. A diferença é que um ensino dominado pela burocracia nos restringe os movimentos e, por consequência, a imaginação”.

 Discutir e questionar é fundamental Bartolomeu gostou de ser professor e para ele o mais importante “é a relação com os estudantes que são os artistas do futuro, o não estar isolado do que está a acontecer. Discutir o que se está a fazer. Entre estar sozinho no atelier ou estar rodeado de jovens artistas, prefiro a segunda escolha. Mas isto só no campo da gravura porque no caso da pintura, esta, pela sua natureza, obriga-nos a estar sozinhos. Não pode haver interferências exteriores. Ensinei em Inglaterra durante 35 anos e, de certo modo, modifiquei a atitude para com o ensino da gravura naquele país. De todos os estudantes que trabalharam comigo e, que ao longo dos anos somaram quase 500, alguns desapareceram, muitos são hoje artistas reconhecidos, outros dirigem departamentos e escolas de Belas Artes. E assim, o meu processo de ensino, anti-burocrático e humanista, espalhou-se. Recordo-me também que em exames de admissão, candidatos com trabalhos de um acabamento impecável mas que se adivinhava uma monotonia de ideias, eram sempre preteridos em favor de outros que não se importavam tanto com a obra bem acabada e limpa mas sim com o espírito crítico que se lhe adivinhava. Muitas vezes eram trabalhos de aspecto sujo, rasgados, riscados, colados mas em que se sentia o poder das ideias”.

Nem tudo o que sai das mãos de um artista é uma obra de arte. “Nem tudo o que o artista cria é obra de qualidade. Cerca de um quarto dos trabalhos que eu fiz, pus de parte ou destruí e há outros que só muitos anos depois reconheço não terem a qualidade inicialmente desejada. É uma questão de perspectiva”, porque a tendência natural do ser humano é para evoluir. “Há também outra coisa interessante que é eu olhar para trabalhos passados, e já não me reconhecer neles, como se tivessem sido feitos por outra pessoa a quem gostaria de ser apresentado”.

Sobre o seu projecto para a criação de um Centro de Gravura e Desenho em Tavira apenas disse: “o projecto está agora em curso e por isso não quero entrar agora em grandes pormenores sobre ele. Este baseia-se na minha oferta à Câmara de Tavira de cerca de 3400 obras de gravura na maior parte da minha autoria mas em que se inclui também um importante núcleo de gravuras e desenhos, tanto de artistas portugueses como estrangeiros. O Centro será essencialmente constituído por uma galeria, uma área de estudo e consulta, uma biblioteca, bem como os necessários serviços administrativos. Não se trata de uma Casa Museu, mas sim de um Centro que se pretende vivo e activo, e onde umas três ou quatro vezes por ano haverão exposições baseadas na colecção, não estando, no entanto, posta de parte a ideia de levar a cabo exposições de artistas não representados no Centro. O Centro incluirá também uma importante colecção de postais antigos bem como uma outra de cartazes. O seu todo ficará propriedade da Câmara Municipal de Tavira”.

Entrevista e fotografia de Paula Ferro

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